sábado, março 03, 2007



Teremos sempre Paris?
Por Tiago Barbosa
http://kontratempos.blogspot.com/

1. Subitamente, a Europa parece descobrir que tem territórios de exclusão nas suas sociedades mais desenvolvidas. A agenda mediática sobrevive destes assombros colectivos, mas a incredulidade não convence. Interiorizamos a desigualdade como um factor endógeno à multiplicação de factores produtivos e fazemos uso das nossas representações sobre a pobreza como uma forma subliminar de enquadrar os pobres: são estes, imigrantes e etnicamente minoritários, necessariamente excluídos. É uma modalidade muito particular de racismo, que justifica uma fortíssima estruturação social por um conjunto de pré-determinações que os sujeitos deverão comportar consigo. O fatalismo fácil de quem não o assiste, portanto, seja na Cova da Moura ou nos anéis
exteriores de tantas cidades europeias.
2. Sem aquelas profecias emergentes em qualquer aspirante a sociólogo de jornal, as ciências sociais permitem apontar um carácter de predição sobre as fontes de conflitualidade social. Em 1991, aquando dos motins raciais de Los Angeles, o sociólogo francês Alain Touraine alertava precisamente para o caldo de exclusão nos subúrbios amargos do seu país. Uma década de estagnação económica na Europa agravou esse quadro. A França tem uma taxa de desemprego estabilizada nos 10% e a geração que cresceu nos bairros tristes de Aulnay-sous-Bois, entre tantos outros, é atingida por 40%. É imenso o cinismo dos que observam aqui o fracasso do modelo social francês. São esses os mesmos que não quiserem discutir a chocante realidade que o Katrina veio revelar em Nova Orleães. E que agora criticam o iliberalismo da tradição
estatal europeia, como se o crime estivesse no Estado social e não nas bolsas de pobreza que qualquer economia de mercado inevitavelmente gera. Tanto, aliás, que a revolta difusa destes «condenados da cidade» (Loïc Wacquant) surge precisamente por se sentirem excluídos do sistema e não por enunciarem uma alternativa face a ele. Com a regressão do proletariado e a transformação industrial da paisagem urbana europeia, são eles os sujeitos sociais de uma nova classe inferior, sem direcção política, caracterizada por uma prática de rua que atenta caoticamente sobretudo contra símbolos da ordem dominante, os corpos policiais, automóveis particulares e instituições públicas, embora
isso ocorra de uma forma bem mais limitada do que o contágio das imagens televisivas nos poderia fazer sugerir.
3. A República francesa, assente numa visão orgânica do Estado e dos seus cidadãos, manteve durante demasiado tempo uma inacção face ao óbvio que acabou por permitir o terreno das tensões que agora irrompem com uma violência pouco habitual. Nos anos recentes, vagas de imigração com referenciais sócio-culturais muito distintos das sociedades europeias acabaram por territorializar, ao nível dos bairros, práticas enraizadas nos seus países de origem. A sharia, vigente num universo paralelo e informal às leis do Estado, traduz a eficácia do fechamento cultural de comunidades que
se deslocaram por motivações económicas. O recrudescimento do islamismo radical veio enquadrar ainda mais essa realidade, ao mesmo tempo que as autoridades procuraram actuar tardiamente a jusante, no plano da repressão institucional. A lei francesa sobre o véu islâmico, impotente nos seus propósitos de generalização, confronta a República com as suas próprias incapacidades de integração. Ou de algumas das escolhas para a concretizar. A partir daqui, falar das virtudes do multiculturalismo enquanto manifestação das sociedades anglo-saxónicas será sempre fazê-lo enquanto programa político. E é essa a ofensiva cultural que pretende anular o Estado social a partir dos seus exemplos europeus mais plenamente alargados desde o pós-Guerra.
4. Uma política de aproximação com organizações não-governamentais e outras estruturas no terreno foi ideologicamente negligenciada pelo governo da direita francesa, que procura agora emendar o erro depois da lógica confrontacional, da racaille de Sarkozy e da ocupação musculada do espaço público. Mas naturalmente que exigir mais apoios sociais do Estado, só por si, nunca resolverá o essencial. Porque não basta a construção de escolas para integrar os franceses que não se sentem franceses: é preciso saber o que ensinar. Do mesmo modo que sólidas redes sociais podem atenuar localmente os efeitos recessivos da economia, mas só com emprego é que os habitantes de bairros fechados sobre a miséria poderão deixar de ser os «bons pobres» dos romances da Condessa de Ségur, diminuídos pelas simbologias do senso comum, revalorizando o seu papel nas sociedades em que vivem. Para que não tenhamos mais de ouvir alguns habitantes das zonas deprimidas de Aulnay-sous-Bois quando apontam a Torre Eiffel ao longe e dizem: «Daqui vê-se a França». Há, pois, que perguntar:
teremos sempre Paris?

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