Jürgen Habermas fala da Europa.
Uma Europa mais forte
No fim de semana passado foi festejado em Berlim o qüinquagésimo aniversário da assinatura do Tratado de Roma, que assinala o nascimento da União Européia. Nesta entrevista, Jürgen Habermas efetua um balanço do desenvolvimento e projeta perspectivas. Eis a sua proposta: nas eleições européias de 2009, os cidadãos deverão votar num referendo sobre se a União Européia deverá ter, futuramente, um presidente eleito pelo voto direto, um ministro das Relações Exteriores e uma base financeira própria (Matthias Hoenig).
-Parece inimaginável que os Estados-membros da União Européia ainda possam guerrear entre si. E o mercado comum, surgido organicamente, trouxe o bem-estar para muitas pessoas. Pode-se festejar como acontecimento histórico a mudança de paradigma na política européia, o abandono do pensamento centrado no Estado nacional e o retorno a uma perspectiva européia?
-Decerto essa é uma razão para festejar, embora a mudança de paradigma ainda não tenha sido levada plenamente a termo. Mas existe ainda outro resultado inteiramente diferente, do qual hoje poderíamos extrair benefícios, desde que com um pouco de consciência do nosso valor. A unificação européia permite desempenhar um papel no mundo contemporâneo, marcado por tensões multipolares. Há 50 anos, no início do conflito entre Leste e Oeste, ninguém podia prever esse papel.
De início, a "Europa" foi uma resposta a problemas que se colocavam no interior do continente. Quando pensamos hoje no futuro da Europa, o nosso olhar se dirige sobretudo aos desafiadores problemas de fora; afinal de contas, a dinâmica da unificação além do patamar atingido no Tratado de Nice não é impulsionada apenas pela ampliação para o Leste. Mas, no momento, ainda não estamos à altura de tais expectativas dirigidas a uma potência capaz de efetuar políticas compensatórias por via diplomática.
-O sr. poderia mencionar um desafio geopolítico?
-Tomemos como exemplo o último conflito entre Israel e o Hizbollah [2006], decidido em solo libanês. Como a política unilateral do governo Bush transformou os EUA há muito tempo em parte interessada no conflito do Oriente Médio, muitos direcionaram suas expectativas para a Europa, tida como mais neutra.
Por um lado, a União Européia enviou Javier Solana, seu alto representante de Política Externa e Segurança Comum, a Beirute e Jerusalém. Por outro, seu coro de vozes dissonantes transmitiu uma imagem ridícula, pois simultaneamente alguns países como a França, o Reino Unido, a Alemanha, a Itália e a Espanha buscam ganhar visibilidade como Estados nacionais e anular-se reciprocamente com iniciativas de fabricação caseira.
-Que prioridades o sr. colocaria na agenda política da União Européia? A Constituição da UE, até agora fracassada, uma política externa comum da Europa, as Forças Armadas conjuntas, a domesticação do neoliberalismo internacional por meio da criação de padrões sociais ou um papel de liderança na proteção internacional do clima?
-O sr. enumera os desafios mais prementes que uma Europa unificada deveria enfrentar no século XXI. Mas uma política externa comum, a criação de Forças Armadas comuns ou uma harmonização das políticas tributárias e econômicas para assegurar a manutenção dos nossos padrões sociais e culturais, hoje ameaçados, são objetivos políticos situados num plano distinto do da fracassada Constituição da União Européia.
Uma União Européia ampliada primeiro precisa arrumar a própria casa, para permanecer governável e obter a necessária capacidade de ação política, antes de se fixar objetivos tão ambiciosos. Não deveríamos cultivar ilusões acerca do que hoje conduz ao fracasso efetivo de um aprofundamento das instituições...
-Qual o significado das votações fracassadas na França e na Holanda?
-Os referendos fracassados apenas trouxeram à luz do dia que os governos estão num beco sem saída e não podem avançar nem recuar. Até então, ainda podiam confiar no "Método Monnet" [atitude como a do diplomata francês Jean Monnet, que considerava mais fortes para a integração tratados concretos do que declarações gerais de princípios], obedecendo aos imperativos forçosamente resultantes da integração econômica.
O mercado comum não foi um jogo de soma zero, mas trouxe vantagens a cada Estado-membro. Diante disso, um marco constitucional para políticas conjuntas exige uma vontade política comum que transcenda a percepção de dividendos a serem embolsados pelos Estados nacionais. Tudo indica que os governos não conseguem chegar a um consenso sobre a finalidade e o sentido do projeto europeu.
-É possível apontar o responsável por isso?
-Abstraindo os Estados-membros recém-incluídos, o Reino Unido e um ou outro país escandinavo caminham numa direção, mas os Estados-fundadores e a Espanha na direção contrária.
[A chanceler alemã] Angela Merkel festejou como êxito o consenso acerca de objetivos fundamentais de proteção ao clima em Bruxelas, ainda carentes de operacionalização. Mas isso realmente foi mais do que uma mera manobra para fugir ao conflito propriamente dito?
-Quem haveria de impulsionar o desenvolvimento da Europa senão os governos?
-Vejo como única saída possível um referendo em toda a Europa. Como donos do procedimento, os governos deveriam reconhecer a sua impotência de fato e "arriscar a democracia", ao menos por uma única vez [alusão ao lema do premiê alemão (1969-74) Willy Brandt, "Vamos arriscar mais democracia"].
Deveriam saltar por cima da sua própria sombra e colocar a si mesmos - na forma dos partidos políticos, dos quais eles se compõem - diante da alternativa de lutar com a viseira aberta por cada voto a favor ou contra uma ampliação da União Européia, num referendo realizado em toda a Europa.
-Como o senhor já esclareceu várias vezes, o desenvolvimento geopolítico exige uma Europa forte. Ela poderia ser um exemplo para associações correspondentes em outros continentes, a fim de formar potências supranacionais. Sem tais global players não poderia surgir um regime mais justo na economia mundial, e os problemas da segurança internacional ou a catástrofe climática não podem ser solucionados em escala nacional. Em duas palavras: será que o Estado nacional não se tornou um modelo que deveria sair de linha, diante de problemas que ele por si só não mais consegue solucionar?
-Não, os Estados nacionais continuam sendo os atores mais importantes no cenário internacional. São também os componentes insubstituíveis das organizações internacionais. Afinal de contas, a comunidade internacional organiza-se na forma das "Nações Unidas".
Quem alimenta a ONU e envia tropas para intervenções com fins humanitários, senão os Estados nacionais? Quem assegura os mesmos direitos para todos os cidadãos, senão os Estados nacionais? O que deve mudar - e já mudou fortemente na Europa - é a autocompreensão dos Estados nacionais. Eles devem aprender a se ver menos como atores independentes e mais como membros, que se sentem obrigados a respeitar normas comunitárias.
Precisam aprender a defender seus interesses mais no âmbito de redes internacionais, por meio de uma diplomacia prudente, do que mediante a ameaça do uso de força militar em iniciativas isoladas.
-O sr. condenou asperamente a rude política de poder dos EUA sob a administração Bush, e, no seu entendimento, predomina atualmente uma "política mundial inteiramente descontrolada, tributária do darwinismo social". Uma Europa forte poderia fortalecer as Nações Unidas e pavimentar o caminho rumo a uma política mundial interna justa? Como imagina isso concretamente?
-Nessa versão abreviada do problema, duas coisas são tratadas de forma excessivamente abreviada. Por um lado, a minha crítica ao governo Bush não tem a menor conotação de sentimentos antiamericanos. Na Alemanha o antiamericanismo sempre foi um componente dos movimentos mais reacionários imagináveis.
Mas a circunstância de que justamente a minha geração admira a cultura política dos EUA, enraizada no século 18, não me obriga a uma fidelidade incondicional. Ela me obriga muito mais a me ater ao sentido normativo da orientação ocidental da República Federal da Alemanha - mesmo contra um governo dos EUA que pode ser destituído nas próximas eleições e contra a sua política suicida.
Por outro lado não sou tão ingênuo a ponto de acreditar que mesmo uma Europa que aprendeu a falar em uníssono possa impulsionar a partir das suas próprias forças a reforma da ONU, com data vencida há muito tempo. Se os EUA não encabeçarem o movimento reformista, como já aconteceu duas vezes no transcurso do século 20, praticamente não teremos perspectivas de êxito. Na melhor das hipóteses, podemos cultivar a débil esperança de que uma Europa mais forte poderia influir nesse sentido em seu aliado.
-O sr. cultiva a visão dos "Estados Unidos da Europa" com governo, nacionalidade e Exército comuns?
O que nos faz avançar agora não é uma visão temerária, projetada para os próximos 50 anos. Contento-me com uma visão até as próximas eleições européias, em 2009. Deveríamos vincular a essa eleição um referendo a ser realizado em toda a Europa, sobre três questões: se a União Européia deveria, além de procedimentos decisórios efetivos, ter um presidente eleito pelo voto direito, um ministro das Relações Exteriores e uma base financeira própria.
Isso corresponde às idéias de Guy Verhofstadt, primeiro-ministro da Bélgica. O projeto seria considerado aceito se contasse com a "maioria dupla" dos Estados-membro e dos votos dos cidadãos. Ao mesmo tempo, o referendo vincularia apenas os Estados-membro nos quais uma maioria de cidadãos teria decidido pela reforma. Caso ele fosse bem-sucedido, a Europa despedir-se-ia do modelo do comboio, no qual o mais lento define a velocidade. Evidentemente, mesmo em uma Europa de centro e periferia, os países que por enquanto preferem permanecer à margem teriam a opção de se associar ao centro quando bem entendessem.
(*) Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, de Brasil.
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