quinta-feira, dezembro 28, 2006


A Europa e a memória
Por Tiago Barbosa Ribeiro
Os símbolos são códigos identitários. Fazendo uso de um passado que se quer presente, aí se reeditam práticas colectivas que estão habitualmente concentradas num tempo que foi. Numa escrita constante de fronteiras mutáveis sobre o outro, o universo de possíveis de um símbolo estará em tudo aquilo que comporta uma atitude relacional por uma unidade no diferente. É assim com o crucifixo, com a foice e o martelo, com a suástica. Mas também com tudo aquilo que se massifica e limita o alcance de uma certa força originária, como é o caso da imagem-objecto de Che. O símbolo é então indissociável de uma simbólica que nos ajuda a preservar aquilo que a memória por vezes esquece. Actualmente, quando o visitante chega a Auschwitz e é convidado a percorrer os fragmentos intactos daquele que foi o expoente de industrialização do extermínio nazi, é transposto para o palco da mais meticulosa das atrocidades que ali foram cometidas durante o holocausto. E isso pode ser tão só um corte de cabelo. É uma experiência sensorial, embora dialogante com símbolos, valores e atitudes. Mas a simbólica vai muito para além de uma simples enumeração de incursões passadas, podendo transformar-se num instrumento de vanguarda e disputa da ordem que então vigora, deixando antever aquilo que ainda virá a integrar essa mesma ordem. Os símbolos apelam a um sentido de particular reverência. Unificam. Excluem. São tão mais transversais a uma produção abrangente de significações quanto menor for a sua auto-reflexividade e a sua impermeabilidade ao decurso dos acontecimentos em redor. Os totalitarismos que desfiguraram a Europa no século XX são disso exemplo. À distância de poucas décadas sobre o abismo do nazismo e do estalinismo, pensávamos que o comunismo envelhecia bem. Mas isso é uma verdade de meio alcance, possível apenas para aquela Europa que faz fronteira com o Leste, não integrando a sua geografia histórica. E que arrisca uma incapacidade genética para conservar uma memória que não pode ser perdida. Neste ano em que comemorámos os sessenta anos sobre a libertação de Auschwitz, a Comissão Europeia pretendeu aprovar uma generosa lei anti-racismo e xenofobia que incluía a proibição da iconografia nazi nos actuais vinte e cinco países membros da União, tal como acontece na Alemanha desde o pós-Guerra. O projecto fracassou quando a Hungria, a Lituânia, a Estónia, a República Checa e a Eslováquia exigiram que a interdição fosse alargada à foice e ao martelo. Alguns países, aliás, onde o símbolo já é ilegal por legislação interna. Esse facto é extraordinário para essa Europa ocidental onde a tradição democrática prevalecente nunca permitiu associar comunismo a opressão, tornando inusitadas as palavras de um eurodeputado eleito num país da antiga Cortina de Ferro: «se decidimos banir um [símbolo totalitário], devíamos decidir banir todos eles». O senso comum aborda os símbolos a partir das leituras permitidas pelo pensamento dominante. E aí, para todos os efeitos, Estaline pertence ao rol dos que puderam aceder aos bastidores do julgamento histórico da Segunda Guerra Mundial e das décadas subsequentes. Logo, escapou-se aqui uma oportunidade de concluir o essencial: proibir símbolos, sobretudo representativos de aparelhos de Estado tão brutais quanto estes, apenas induz um pacto de silêncio que ilude a realidade. É uma forma recorrente de amnésia, porque não singulariza o fenómeno cujas cicatrizes pretende ocultar. Como escreve Hannah Arendt em On Violence (1969), «as confissões de culpa colectiva são a melhor salvaguarda possível contra a descoberta dos culpados, e a própria extensão do crime a melhor desculpa para não se fazer nada». Daí que seja uma amostra de fraqueza política a interdição de símbolos que já contêm uma imensa carga de interditos. Até porque quando as instituições alemãs garantem que a actual força do Estado protegerá a comunidade judaica contra a reincidência do antisemitismo, não se poderá ignorar que o veto da suástica não estanca o recrudescimento da extrema-direita e do ideário nazi no país. Incongruências que os decretos-lei não derrubam. O movimento proibicionista do Leste é igualmente sintomático. Mas o mais preocupante aí não é a legislação que vem sendo publicada, impossível de harmonizar a nível europeu e explicável em parte pela incapacidade de digerir a violenta transformação das suas estruturas pós-comunistas, mas sim o modo como esses países vêm afirmando a sua independência por oposição à Rússia. Paralelamente à proibição dos símbolos comunistas, há uma desconfiança duradoura com o antigo centro político da União Soviética. Internamente, essa tensão apoia-se no racismo dos nativos contra muitos dos cidadãos russos que se deslocaram para o Báltico antes de 1989 e que não têm hoje qualquer nacionalidade. Mas é uma desconfiança que se agrava no plano externo com o complexo pós-imperial da Rússia autoritária de Vladimir Putin, que interfere nas soberanias da região ao fomentar candidatos anacronicamente «pró-Kremlin», enaltecendo as décadas de ocupação do Exército Vermelho e recuperando alguns dos símbolos desse tempo, como o hino da URSS. Esta lógica conflitual que Moscovo imprime à sua relação com os antigos Estados das «democracias populares» só pode preocupar esta Europa alargada que finda na Rússia. Um colosso regional que tem fronteiras com a China e que é tão imprescindível quanto instável. Contrariando a capacidade de racionalizar o vivido, a ideologia do esquecimento parece ser uma norma nos falsos debates que os símbolos suscitam. Assim como quando se radicalizaram os discursos sobre o «factor Deus» no preâmbulo da Constituição Europeia, impossibilitando que a história pudesse realmente confirmar a relevância do cristianismo nas modalidades civilizacionais que permitiram as rupturas da modernidade, este ressentimento com o passado indicia uma desagregação cultural que é igualmente uma incapacidade de traçar identidades colectivas. Tal como o são, de resto, todas as liturgias repetitivas que se cumprem oficialmente para assinalar datas históricas que compõem o calendário da simbólica. Portugal, claro, também não escapa
à erosão da sua história recente. O salazarismo é simplesmente ignorado ou então é mantido nas versões estereotipadas dos que militaram contra ele. Os desfiles anuais do 25 de Abril, reproduzindo uma retórica gasta, expressam precisamente esse distanciamento. Assumindo a ritualização do contrato social, a domesticação da data revolucionária tende a transformar-se numa comemoração de si própria. Deste modo, as práticas cerimoniais assumem o paradoxo de fomentar o esquecimento: são fábricas do homogéneo, dirigidas para os seus símbolos. O acto de revivescência institucionaliza os produtos cívicos resultantes do fim da ditadura, mas não os problematiza nem os faz perdurar criticamente. Porque há uma luta pela hegemonia da memória, sempre numa lógica de consenso. Quando sabemos que o edifício da antiga sede da polícia política salazarista nunca será um museu porque ali foi projectado um condomínio de luxo, traduzimos plenamente a dimensão selvagem deste recalcamento simbólico-ideológico do nosso passado. Que depois, incapaz de dotar os símbolos de reversibilidade, comportará certamente uma qualquer proibição no futuro.

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